“Não precisa ser letrada/ Nem mesmo ser
diplomada/ Para um parto fazer/ A Medicina te aceita/ Mesmo sabendo a receita/
Como nascer um bebê”, cantaram os filhos de mãe Gulora em homenagem ao que
seria seu centenário, caso estivesse viva em 2014, nas terras de Altaneira. Toda uma geração da cidade foi pega pelas mãos
caleadas de Maria Glória da Conceição, a Gulora. Em vida, seu ofício de
parteira foi negligenciado pela autoridade pública, mas admirado pelas comadres
e compadres que corriam em busca de sua ajuda: “Corre, chama Gulora, que o
menino vai nascer!”. E ela ia, a hora que fosse. Hoje, a parteira batiza a
maternidade do Hospital Municipal, ilustra empreendimentos locais, foi tema de
pesquisa acadêmica e também personagem em exposição.
“Oh mãe Gulora/ conte a história/ Das noitadas
fora de hora/ Que faziam tu correr”. O canto, de autoria de Maria Luiza de
Oliveira, foi composto originalmente em 1991. Numa época em que tudo acontecia
cedo demais, desde casar a morrer, Maria Glória largou a boneca de brincar aos
12 anos para socorrer uma senhora que estava “botando menino no mundo”. Não
parou mais. Dizem que foi dom divino, que, sem aprender com ninguém, a menina
sabia direito onde tocar e o que fazer. Não se puxa, não se apressa e não se arranca
menino, ela entendeu. Só se pega. “Mãe só não fazia parto cesárea, porque não
tinha as ferramentas”, conta a filha biológica, Maria Isabel, que é rezadeira.
“Mas até desatravessar menino dado por sem jeito e buscar o ‘parto’, ela
fazia”. Ao “parto”, ela se refere à placenta, que deve ser retirada para não
causar infecção ou hemorragia.
Histórias não faltam. Em uma madrugada de 1973,
a professora Hilda Cidrão se aperreou de dor e o marido correu em busca de
Gulora, que foi a parteira de seu primogênito. Hilda declara com um sorriso
calmo e saudoso: “Na hora da dor, ela falava para a gente se concentrar em
Deus, pedindo força. Era tão carinhosa, ativa, esperta!”. E completa: “Não
deixava a gente desanimar de maneira alguma”. Noite movimentada, na mesma
madrugada em que aparou nas mãos um novo membro da família Cidrão, Gulora ainda
amparou duas outras famílias.
É
de conhecimento popular que Gulora é “mãe” de quase todos os altaneirenses
nascidos de 1944 até 1995 – ano em que parou de “pegar menino”. Em 2004, por
iniciativa do advogado Raimundo Soares, um levantamento dos “filhos” de Gulora
reuniu a Rádio Comunitária e a população do município, incluindo o distrito de
São Romão e os sítios vizinhos. O resultado da pesquisa contabilizou 1.860
filhos e filhas, do rico fazendeiro de gado à senhora que tira a renda da
máquina de costura. Para se ter uma ideia, segundo o Instituto Brasileiro de
Geografia e Estatística (IBGE/Censo 2000), a população de Altaneira em 2000 era
de 5.687 habitantes – portanto, cerca de 32,7% dos moradores chegaram ao mundo
pelas mãos da grande mãe-parteira.
Nascida
em 1914, lá pelas bandas de Alagoas, Maria Glória tinha 14 anos quando casou
pela primeira vez. Teve dois filhos desse matrimônio. Do segundo vieram nove.
Em 1944, a família chegou à Vila de Santa Teresa, mais tarde declarada
município de Altaneira. Nem tudo foi bonito. “Nos largamos no meio desse mundo
pelo sertão, sem conhecer ninguém. Ela se obrigou a pegar uma cuia, com um
balaio na cabeça e alguns pratinhos de barro...”, lembra a filha Maria Isabel.
Citando uma por uma as famílias que ali já viviam, ela ainda recorda os tempos
de miséria que enfrentaram, alimentando-se de lascas de palma assada ou alga
cozida da lagoa. “Nós já sofremos nesse lugar, minha filha”.
E quando a vila foi se formando, espalhou-se
pelos arredores a fama da parteira Gulora. Na época, sem hospital ou qualquer
tipo de assistência médica por perto, a solução era se apoiar exclusivamente na
sabedoria das parteiras. Pelo sangue da mulher, a paciência e a força para
ajudar a vida a vingar. Pelo choro da criança, a felicidade e o alívio de uma
missão cumprida, de um dom compartilhado. Gulora também era rezadeira e se
agarrava com fé em Padre Cícero. Sempre com o rosário por perto, uma de suas
receitas para a recuperação pós-parto era banhar o recém-nascido à luz de velas
e guardar a água usada embaixo da cama da mãe, para que a criança crescesse boa
e honesta.
O que se ouve pelas rodas de conversa nas
calçadas de Altaneira é que mãe Gulora era casca grossa, uma “velha bruta”, mas
tinha a sensitividade de um ser milagroso. Sentia o coração do bebê ainda
dentro do útero. Sabia o que acontecia no interior da mulher em trabalho de
parto tanto quanto um médico com anos e anos de estudos. E, sem arrogância, admitia
a derrota quando não havia esperança: “Pode tirar fora (ir para o hospital),
que eu não dou jeito”, dizia. Apesar de não ser a única parteira da cidade, era
a mais procurada.
Mãe Gulora adorava uma boa festa, churrasco e
café preto, assim como fumar tabaco no cachimbo, sentada na cadeira de balanço
na calçada de casa, rasgando histórias a quem quisesse ouvir. Ela faleceu em 12
de fevereiro de 2009, aos 96 anos. Enfrentou, ao longo de dois anos, uma
diabetes e uma trombose cerebral que a deixou cega de um dos olhos. Rodeada até
a derradeira hora de seus 11 filhos biológicos e de tantos outros que ajudou a
botar no mundo, dos familiares e dos amigos, Gulora partiu deixando um vácuo
imensurável na história de toda uma cidade. “Ela morreu, mas sua voz ficou no
mundo”, acredita Maria Isabel. E todos os altaneirenses.
Publicada originalmente na Revista Cariri
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