Faz
duas semanas, em carta publicada na seção competente, um leitor elogiou
CartaCapital ao defini-la como revista de esquerda.
Que significa ser de
esquerda? Bom ou mau? As opiniões, como se sabe, divergem, e em um país
maniqueísta como o Brasil divergem absolutamente, embora o significado exato da
palavra tenha perdido a clareza de antanho.
Há
mesmo quem diga que o tempo das ideologias acabou de vez como se fosse possível
admitir a inexistência de ideias capazes de mover as ações humanas. De todo
modo, em terra nativa, basta pouco para ser classificado de esquerda, ou mesmo
comunista. Vários requisitos exigem-se para chegar a tanto, mas dois são
determinantes.
Primeiro,
denunciar com todas as letras a insuportável desigualdade reinante no País,
recordista em má distribuição de renda. Segundo requisito. Não se acovardar
diante da prepotência oligárquica, tão desbragadamente exercida por meio da
mídia nativa, paladina de uma liberdade de imprensa que não passa de liberdade
de propalar impunemente o que interessa aos patrões, moradores cativos da
casa-grande e, portanto, de inventar, omitir e mentir. Esta é também uma forma
de corrupção.
No
enredo político em pleno desenvolvimento no cenário nacional, o papel da
covardia é capital, é a partícula primeva que explode no big-bang. Espero ser
entendido ao acentuar que a encenação é digna de um colossal hollywoodiano, e
talvez fosse oportuno entregar a direção a Cecil B. DeMille. Cinéfilos vetustos
como o acima assinado sabem o que estou a dizer. Vamos, porém, ao ponto, sem
exagerar em esperanças quanto a essa compreensão.
A
par da credulidade de muitos leitores, ouvintes e telespectadores e da
benfazeja indiferença da senzala, preocupada com temas práticos e cotidianos,
sobra, com extraordinário vigor, a covardia de quem haveria de resistir. A
começar pelo Supremo Tribunal Federal. Lembrei-me do meu professor de Direito
Penal na Faculdade de Direito do Largo de São Francisco, em uma das cúspides do
chamado Triângulo de uma São Paulo adoravelmente provinciana. Noé Azevedo,
cavalheiro de cabelos brancos, supunha-o parecido com Caronte, o barqueiro do
Styx na versão dantesca, “branco por antigo pelo”. Ensinava a supremacia do
Direito Natural: os fatos merecedores de julgamento, hão de sê-lo no mesmo
local em que se dão.
Aí
está o pecado original, imperdoável, da Lava Jato. Escudado pela polícia
curitibana, Sergio Moro manda às favas o Direito Natural. Os ministros do STF
não foram alunos do professor Noé, está claro, e talvez nem saibam dele.
Poderiam, contudo, ter consciência das suas responsabilidades. No entanto,
diante do desmando e de muito outros cometidos na república jurídico-policial
de Curitiba, se acovardam.
Divididos
nos sentimentos e nos humores, os senhores ministros de uma justiça desvendada,
curvam-se aos pés da arrogância midiática. Apavoram-se com a reação, impressa,
radiofônica e televisada, a qualquer tentativa de recolocar a situação nos
trilhos da lei, sem deixar de apreciar referências gaudiosas às suas pessoas,
uma foto aqui, uma nota favorável , ou mesmo uma entrevista, acolá. A citação
empolga e compensa o medo.
O
mesmo gênero de temor atinge o próprio governo, acuado e até hoje incapaz de
inaugurar o segundo mandato de Dilma Rousseff, tão bem representado na sua
inércia aturdida por um ministro da Justiça inexoravelmente inepto. Aceita-se a
afirmação da prioridade do combate à corrupção, enquanto demole-se o Estado de
Direito.
E
as bancadas petistas do Congresso e os parlamentares da dita base aliada?
Acovardados, alguns à sombra da espada de Dâmocles, outros por que simplesmente
tementes à mídia em lugar de Deus, possivelmente alheado como de hábito das
misérias humanas. Se algum dia o Brasil foi um Estado de Direito a despeito da
presença inesgotável da casa-grande e da senzala, deixa de sê-lo agora debaixo
dos golpes das manchetes.
Publicado
originalmente no portal Carta Capital
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