Muitos
são os livros de referência sobre o Padre Cícero. Como toda figura em torno da
qual se desenrolam grandes acontecimentos, sua imagem é marcada por um sem-fim
de polêmicas. Assim, a literatura que dá conta desse fenômeno cultural
nordestino tende a variar no escopo entre religião e política, pelos extremos
da veneração e da acusação de caudilhismo.
As
abordagens sobre o tema tratam o mito ora como precursor da Teologia da
Libertação (O padre Cícero e a opção pelos pobres, Neri Feitosa), ora como
representante do coronelismo sertanejo (O político Pe. Cícero, Maria Laudícia
Holanda), e em crônicas de olhar local (Joaseiro Antigo, Otávio Aires de
Menezes) e reportagem biográfica (Padre Cícero: poder, fé e guerra no sertão,
Lira Neto).Todos com muito valor em conteúdos e angulações.
Assuntos
correlatos, envolvendo pessoas da relação pessoal e histórica de Cícero, também
animam o debate. É o caso das histórias do seu secretário particular Benjamin
Abraão (“Entre anjos e demônios”, Federico Pernambucano de Mello) e da beata
Maria de Araújo (“A mulher sem túmulo”, Nilze Costa e Silva). Entretanto, há
uma obra que se pode chamar de o livro dos livros sobre Padre Cícero. Trata-se
de Milagre em Joaseiro, de Ralph Della Cava (Companhia das Letras, SP, 2014),
cuja 3ª edição foi lançada na quarta-feira passada (19), na livraria Cultura,
em Fortaleza.
O
livro do historiador nova-iorquino traz uma interpretação ampla e bem tecida do
fenômeno de Juazeiro, destacando-se pelo distanciamento das rusgas regionais e
pela inteireza com que contextualiza fatos e ficções. Grosso modo, sua ruptura
epistemológica caracteriza-se pela consideração ao relacionamento sistêmico do
padre Cícero com o todo, e não apenas com aspectos da religiosidade e da
política. Daí a extensão do ciclo dessa obra, que renasce a cada edição.
Della
Cava trata o povo da Juazeiro do Padre Cícero como um coletivo inventor de
novas formas de sociabilidade, de liga econômica e de um especial fazer
político. O episódio da hóstia que sangra na boca da beata, responsável pelo
tropo do “milagre” que aparece no título, funciona como um vórtice dinamizador
da circularidade do fenômeno como tema brasileiro descolado de extensões
oficiais da história.
A
qualificação fundamentalista desse movimento de inspiração sociorreligiosa e
política significa, para o autor, uma grave distorção dos preconceitos e
estereótipos da tradição letrada. Observar Juazeiro apenas como “centro de
fanatismo religioso” é subestimar suas importantes transformações políticas e
econômicas (p.151).Com esse pensamento aberto, Ralph Della Cava transformou o
objeto de sua tese de doutorado em uma história cheia de universalidades, mas,
antes de tudo, fincada na cultura local.
O
livro Milagre em Joaseiro foi escrito quando a Juazeiro do Padre Cícero tinha
saído da condição de “povoado de encruzilhada”(por volta de 1865) para ser uma
cidade com 80 mil habitantes e uma das mais importantes do interior do Ceará
nos anos 1960. Passados cinquenta anos, a cidade chegou a uma população de 250
mil pessoas, sem contar que, com a conurbação da Região Metropolitana do
Cariri, esse número pode dobrar. A pujança de Juazeiro faz com que a cidade
seja a única do interior cearense a contar com voos regulares de empresas
aéreas comerciais.
Com
narrativa de inserção e de proposta de uma nova agenda para as formas de pensar
e se relacionar com o fenômeno juazeirense, o livro estimula a reflexão sobre
as circunstâncias históricas em que se desenvolveu o mito de Cícero.
Evidencia-se em suas páginas a compreensão de que ninguém vira uma lenda
sozinho, por virtudes absolutas, em que pese, neste caso específico, a
determinação individual de cunho visionário do padre Cícero de reconhecer e
potencializar os saberes do povo.
Na
apresentação da terceira edição, o professor Diatahy Bezerra de Menezes destaca
pontos essenciais do livro de Della Cava e sua disrupção em um cenário onde o
mapa cognitivo do Brasil se resumia a Norte e Sul, Litoral e Sertão. Ele realça
a migração para o domínio da história de um tema preso à “hagiografia” e à
“demonologia”. Ressalta ainda o tratamento de movimento popular sobrevivente à
repressão da Igreja e do Estado dado pelo autor, e salienta que a obra de Della
Cava dá corpo à ideia e ao conceito de regionalismo.
O
autor realmente surpreende no que oferece de percepção multicasual, o que
possibilita uma leitura de respostas a nuances que dão volume e intensidade ao
mito. Quando ele afirma que a composição de peregrinações teve em sua
heterogeneidade social “muitos romeiros que eram trabalhadores rurais,
vaqueiros e rendeiros desprovidos de terra, e uma irregular dispersão de
artesãos (...) e que comerciantes, educadores e advogados foram para lá por
motivo de ordem comercial, profissional e política” (p.158), ele faz com que o
imponderável ganhe sentido, os mistérios tenham seus motivos humanos e a
narrativa histórica seja mais do que uma resenha do passado.
Com
informações O Povo Online
Nenhum comentário:
Postar um comentário
A Administração do Blog de Altaneira recomenda:
Leia a postagem antes de comentar;
É livre a manifestação do pensamento desde que não abuse ou desvirtuem os objetivos do Blog.