Thorning-Schmidt chama Cameron para a "selfie" com Obama, durante o funeral de Mandela – foto Roberto Schmidt / AFP |
O
ditado nos conta que uma imagem diz mais do que mil palavras. Assim, baseados
em uma única foto do funeral de Nelson Mandela, o jornalismo mundial e a parte
da sociedade conectada à internet concluíram que o presidente dos EUA, Barack
Obama, e os primeiros-ministros David Cameron (Reino Unido) e Helle
Thorning-Schmidt (Dinamarca) são três mal educados incapazes de se comportarem
em um momento fúnebre e que a primeira-dama norte-americana, Michelle Obama,
ficou irritada ao ver o marido “flertar”. Nada mais inverídico.
Foi
preciso o depoimento de um fotógrafo, com exatamente 685 palavras, para o
contexto da foto vir à tona. Em post publicado (em inglês) no blog dos
correspondentes da agência AFP, Roberto Schmidt conta que a imagem foi feita
minutos após o discurso de Obama no estádio FNB (Soccer City), em
Johannesburgo, em meio a um clima de celebração pela memória de Mandela. “Ao
meu redor, sul-africanos estavam dançando, cantando e sorrindo em homenagem ao
líder morto”. O fotojornalista conta, na sequência, o óbvio, que “fotos podem
mentir”. “Na realidade, apenas alguns segundos antes, a primeira-dama [Michelle
Obama] estava ela mesma brincando com aqueles ao seu redor, Cameron e
Thorning-Schmidt incluídos. Seu olhar severo foi capturado por acaso.”
As
conclusões (erradas) a que jornalistas e público chegaram nas últimas 24 horas
podem refletir uma série de coisas – até um preconceito direcionado a Michelle,
uma mulher negra rivalizada pela “loira nórdica”, como afirmou Roxane Gay na
revista Salon – mas antes de tudo representam a contaminação do jornalismo pelo
imediatismo da internet e das redes sociais. Quase tudo é analisado de forma
expressa, a reflexão perde espaço para a contagem de cliques e, na pressa, cada
vez mais pessoas “morrem, mas passam bem”.
A
explicação do fotógrafo da AFP não terá um centésimo da repercussão da imagem
feita por ele. Rendeu um texto em Carta Capital, talvez um relato em alguns
jornais ou, quem sabe, uma nota de rodapé na Wikipedia. O texto deveria servir,
entretanto, como um chamado para os jornalistas de todo o mundo questionarem
seu papel na sociedade.
A imprensa deve se render ao circo que a grande maioria
do público deseja, abastecendo os leitores e telespectadores com fotos e
notícias irrelevantes (e se retroalimentando com a amplificação disso), ou
trazer à tona questões verdadeiramente importantes e debates que possam
aprimorar a sociedade?
A
resposta parece evidente. O jornalismo bem feito pode provocar mudanças boas no
mundo, como, para ficar em um só exemplo, deixaram claro o Guardian e Glenn
Greenwald neste 2013. O jornalismo apressado, sem reflexão, entretanto,
contribui para manter a sociedade como ela é, superficial. Exatamente como uma
selfie.
Com
informações Carta Capital
EM TEMPO: Selfie
é uma palavra em inglês, um neologismo com origem no termo self-portrait, que
significa autorretrato, e é uma foto tirada e compartilhada na rede.
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