Folha de um dos apócrifos
de Nag Hammadi |
"Quem não conheceu a si
mesmo não conhece nada, mas quem se conheceu veio a conhecer simultaneamente a profundidade
de todas as coisas."
A frase acima é atribuída a Jesus
Cristo, mas não adianta ir procurá-la na Bíblia. Ela não está nos Evangelhos de
Lucas, Marcos, Mateus ou João, os únicos relatos da vida de Jesus que a Igreja
considera autênticos.
A citação faz parte de outro
evangelho, o de Tomé, que, assim como outras centenas de textos semelhantes,
foi escrito por alguns dos primeiros cristãos, entre os séculos 1 e 3 da nossa
era.
Ele foi cultuado por muito tempo.
Até que, em 325, o imperador romano Constantino, em Nicéia, na atual Turquia,
definiu que entre os inúmeros relatos sobre a vinda de Cristo, só quatro eram
"inspirados" pelo filho de Deus: surgiram os evangelhos canônicos.
Os outros eram apócrifos, de
legitimidade duvidosa e foram proibidos. Quem teimou em segui-los passou a ser
considerado herege. Muitos foram excomungados, perseguidos e presos. A maioria
dos apócrifos acabou destruída.
O Evangelho de Tomé, o de Filipe
e o de Maria Madalena escaparam da
destruição graças a um egípcio anônimo, que, no século 4, escondeu num jarro de
barro cópias manuscritas na língua copta desses textos banidos pela Igreja
Romana.
O jarro ficou 1.600 anos sob a
areia do deserto, até ser achado por um grupo de beduínos, em 1945, perto da
cidade egípcia de Nag Hammadi. Os textos foram traduzidos e chegaram ao
conhecimento dos cristãos do mundo.
Hoje, milhares de pessoas
professam suas crenças com base nos apócrifos. Por que que esse interesse
moderno nos apócrifos?
Talvez a principal razão seja o
fato de que eles revelam mais sobre Jesus enquanto ser humano: vários dos
apócrifos trazem passagens reveladoras para aqueles que tentam enxergar o homem
por trás do Deus.
Alguns apócrifos não fazem
referência alguma à virgindade da mãe de Jesus, um dos dogmas dos canônicos.
Além disso, vários apócrifos
trazem o retrato de um Jesus diferente do que conhecemos: um Jesus que valoriza
o conhecimento e o coloca no mesmo patamar da fé.
Na citação que abre este texto,
atribuída a Jesus pelos apócrifos, evidencia-se a importância da sabedoria, e
do autoconhecimento, conceitos totalmente ausentes nos canônicos, que só
oferecem dois caminhos para a salvação: a fé e as boas ações.
Os apócrifos falam a um
contingente que não pára de crescer nos tempos atuais: os ávidos por
espiritualidade, mas desconfiados da religião.
Muitos apócrifos pregam também
códigos de conduta menos rígidos que os do cristianismo tradicional.
Numa passagem do evangelho de Maria
Madalena, Cristo diz: "eu não deixei nenhuma ordem senão a que eu lhe
ordenei, e eu não lhe dei nenhuma lei, como fez o legislador, para que não
sejas limitada por ela". Esse trecho parece contrariar a própria
autoridade da Igreja.
Os vários apócrifos valorizam o
papel da mulher: os evangelhos de Filipe e de Maria Madalena afirmam que esta
recebia revelações privilegiadas do Salvador. "O Senhor amava Maria mais
do que todos os discípulos e a beijou na boca repetidas vezes", afirma o
Evangelho de Filipe.
Nos evangelhos canônicos todos
somos pecadores e Cristo morreu na cruz para nos salvar: nós pecamos, ele
morreu. Nos evangelhos de Tomé, Filipe e Maria Madalena não há uma só linha
sobre o julgamento e a condenação de Jesus.
O cristianismo, no começo, não
era um só. Pode-se dizer que os apócrifos são vestígios de cristianismos
perdidos.
Os primeiros cristãos viviam em
comunidades clandestinas, que se reuniam às escondidas nas periferias das
cidades e que tinham pouco contato umas com as outras.
Essas comunidades eram lideradas
muitas vezes por pessoas que conheceram Cristo ou pelos próprios apóstolos.
Como Cristo não deixou nada escrito, coube a essas primeiras lideranças do
cristianismo construir a religião.
É provável que os textos dos evangelhos
tenham sido construídos a partir dos ensinamentos dos apóstolos, recolhidos por
seus seguidores. Essas versões, em diversos textos, nem sempre concordavam umas
com as outras.
Entre os primeiros grupos
cristãos havia, por exemplo, os ebionitas, uma das seitas mais antigas. Eles se
consideravam judeus e achavam que Jesus era o Salvador apenas do povo hebreu.
No outro extremo, estavam os
marcionitas, para quem havia dois deuses. O primeiro deles seria mau, o deus
dos judeus. Jesus seria o segundo, um deus bom, que teria surgido para nos
liberar da divindade maligna. Esse cristianismo foi popular no começo do século
2, antes de ser condenado como heresia em 139.
Havia também os gnósticos, que
tinham crenças aparentadas às dos marcionistas, mas acreditavam que o Deus bom
influiu na criação e dotou cada ser humano de uma centelha divina, que nos dava
a capacidade de despertar dessa imperfeição e conhecer a verdade através do
conhecimento.
Havia ainda os seguidores de
Tomé, que acreditavam na salvação pelo conhecimento, mas pregavam que a busca
deste era individual: os tomesinos rejeitavam a hierarquia e, portanto, a
Igreja.
Havia, finalmente, os seguidores
de Paulo e os de Pedro, fortes especialmente em Roma, que não eram maiores nem
mais representativos que os outros, mas, devido à proximidade com a burocracia
que administrava o Império, eram mais organizados e hierarquizados e, ali,
estava o embrião do que veio a ser mais tarde a Igreja Católica Romana.
As comunidades de Paulo e as de
Pedro seguiam um certo conjunto de textos e rejeitava outros. Mas, ambos
consideravam legítimos os evangelhos de Marcos, Matias, Lucas e João, que
provavelmente são os mais antigos e menos controversos.
Em 312, o imperador Constantino
se converteu ao cristianismo. Ele
administrava um império que era quase "universal", e queria
também uma "Igreja universal": escolheu o cristianismo de Roma.
Quando, 13 anos depois, sob as
ordens de Constantino, a Igreja se reuniu para decidir o que era o
cristianismo, os bispos de Roma, mais organizados e com o apoio decisivo do
imperador, se sobressaíram nas discussões.
O credo de Nicéia, que proclamou
os evangelhos canônicos, passou a ser a doutrina oficial de todos os cristãos,
e foram proibidos quaisquer outros textos que não fossem os de Lucas, Marcos,
Mateus e João.
Entre os textos que foram
proibidos, vários faziam parte das bibliotecas gnósticas. Acredita-se que os
manuscritos de Nag Hammadi sejam tesouros salvos da biblioteca gnóstica do
Mosteiro de São Pacômio, que ficava lá perto.
Ninguém sabe ao certo quantos
evangelhos foram suprimidos. O que se sabe é que só quatro livros foram
considerados "corretos". Apenas neles "o ensinamento das linhas
de Deus é proclamado. Não acrescentem nada a eles, não deixem nada se afastar
deles", dizia um decreto de um bispo de Alexandria.
Desde o encontro de Nicéia só
haveria quatro evangelhos, e, pela primeira vez, um só cristianismo.
Compilado de matéria publicada na
revista Superinteressante, assinada por Érica Montenegro
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