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13 de abril de 2010

Os Campos de Concentração no Ceará durante a seca de 1932 por Kênia Sousa Rios

O ano de 1931 não trouxe o inverno desejado. No mês de janeiro, poucas chuvas apareceram e, nos meses seguintes, o inverno se manteve no mesmo ritmo. O ano de 1931 foi difícil, mas a maioria dos sertanejos permaneceu nos seus lares. Os registros de migração no ano de 1931 assinalaram que foi pequeno o número de fugitivos da seca.

O inverno de 1932 foi esperado com ansiedade pelos sertanejos que, nas suas experiências, sabiam do desespero que seria gestado caso a chuva não aparecesse. Mas, dezembro de 1931 passou anunciando a grande seca que se aproximava. E em janeiro de 1932, os primeiros retirantes começaram a chegar em Fortaleza. Outros resolveram aguardar até o dia de S. José (19 de março), como a última esperança para o inverno.

No final do mês de março, grandes levas de retirantes já enchiam de tristeza e fome as estradas do Sertão. Das mais longínquas paragens da caatinga saíam homens e mulheres que, a caminho da cidade, arrastavam seus filhos e alguns pertences. Muitos sertanejos se juntavam, formando enormes bandos de flagelados. Na angustiosa luta para arrefecer a fome, os retirantes matavam e comiam algumas reses que ainda resistiam nos pastos das grandes fazendas. Nos jornais de Fortaleza, eram comuns notícias sobre o roubo de bois e vacas de particulares.

Os flagelados caminhavam longos trechos a pé, em busca de uma cidade com estação de trem. As estradas de poeira findavam quando se encontravam com os caminhos de ferro. Das estações ferroviárias saíam grandes levas de retirantes em direção à Capital.

A partir de abril de 1932, os trens que saíam do Sertão para Fortaleza transportavam uma impressionante quantidade de flagelados. De modo bastante recorrente, os jornais da Capital publicavam matérias sobre a chegada diária de centenas de retirantes. No jornal O Povo do dia 13 de abril, havia, por exemplo, a seguinte manchete: “Mais dois trens entulhados de famintos se dirigem a esta capital”.

Em fins de abril, os ricos da Capital, ou melhor, de Fortaleza, começaram a pressionar o Governo a tomar providências diante da invasão de famintos na cidade. Com isso, o poder administrativo suspendeu a distribuição das passagens de trens para Fortaleza. Entretanto, nos meses iniciais, essa medida não foi suficiente para deter a vinda dos flagelados. Decididos a sair do Sertão, muitos sertanejos invadiram trens e chegaram ao destino previsto.

O Jornal O Povo, de 13 de abril de 1932, anunciava: “mais um trem fora invadido pelos flagelados no Sertão central do Estado”. Matérias como essa eram freqüentes, sobretudo nos meses de abril e maio de 1932. No jornal O Nordeste do dia 08 de abril, a manchete era a “tragédia da fome”. Com essa matéria, o periódico destacava os freqüentes assaltos dos flagelados aos trens no Sertão do Ceará: As regiões mais atingidas pela seca aglomeravam nas suas estações de trem uma imensa quantidade de famintos. Desses lugares, saíam, todos os dias, locomotivas com os seus vagões completamente lotados. Muitas das Estações Ferroviárias transformaram-se em espaços de grande tensão entre os retirantes e as forças policiais.

Eram, portanto, as estações ferroviárias os locais onde se configuravam os principais conflitos entre os flagelados e as normas do poder administrativo. Afinal, desses lugares saía a “onda faminta” que enchia de pobreza e doença as ruas de Fortaleza. Com isso, a burguesia da Capital, representada sobretudo por ricos comerciantes, mobilizava-se para deter esses indesejáveis habitantes. Na cidade, os locais de isolamento dos flagelados já não davam mais conta de manter o devido distanciamento entre ricos e pobres. Nesse sentido, a idéia manifesta pelos grupos poderosos era então, impossibilitar a saída dos sertanejos do próprio sertão.

Desse modo, em meados de abril de 1932, sete Campos de Concentração foram erguidos às margens dessas ferrovias em pontos estratégicos para uma maior eficácia no aprisionamento dos retirantes que mantinham a idéia de chegar em Fortaleza.

A Interventoria do Ceará, representada por Roberto Carneiro de Mendonça, publica em seu relatório um cuidadoso discurso de legitimação para o estabelecimento dos Campos de Concentração:

“Para attender com efficiencia os serviços de socorro aos flagellados, e evitar o deslocamento deveras temível para a saúde e a traquilidade publicas das populações sertanejas que emigravam para diversos pontos, principalmente para a capital, a interventoria tomou urgentes providencia. Tratou o governo de concentrar os flagelados em pontos diversos, afim de socorre-los com efficiencia e no tempo opportuno. Foram criadas, sob a fiscalização do Departamento das Secas, sete concentrações: Burity, no Município de Crato; Quixeramobim, no Município do mesmo nome; Patu, no Município de Senador Pompeu; Cariús, no Município de São Matheus; Ipú, no Município de mesmo nome; Urubu e Otávio Bonfim, no Município de Fortaleza”

A preocupação com a saúde do sertanejo é posta em relevo para fortalecer os laços do projeto dos Campos de Concentração com outros que se apoiavam no humanitarismo e na caridade das elites urbanas da Capital. Nesse sentido, a cidade de Fortaleza que se projetava como moderna e civilizada, mantinha sua imagem resguardada. Afinal, os Campos de Concentração estavam calcados no empenho desses ricos comerciantes em arrefecer os sofrimentos de tantos sertanejos que, segundo eles, nem mesmo podiam se deslocar do sertão.

Contudo, em Fortaleza ainda foram erguidos dois Campos para àqueles que conseguissem escapar ao controle de fixação nas Concentrações do interior. Esse Campos tornaram-se os modelos para a divulgação do projeto na imprensa. Em junho de 1932 os Campos da Capital concentravam cerca de 1.800 retirantes enquanto o Campo de São Matheus, que raramente era comentado nos jornais, chegou a concentrar 28.648 flagelados.

Observa-se que o número de retirantes no Campo de Fortaleza é significativamente menor que as Concentrações do interior. Desse modo, esses números podem ser vistos como um forte indício sobre o sucesso das demais Concentrações no Sertão. Nesse sentido, pode-se afirmar que, para chegar ao lugar onde habitavam os ricos da “cidade do sol”, o retirante teria que transpor várias barreiras. A última muralha era os dois Campos que localizavam-se na própria cidade, afastados dos bairros nobres. Depois do erguimento dos Campos de Concentração, as ruas da capital ficaram ainda mais isoladas do flagelo.

Tudo indica que foram as concentrações de Fortaleza os dois Campos nos quais houve um maior e mais eficiente exercício do poder disciplinar. Em várias reportagens publicadas nos jornais da Capital, percebe-se que as autoridades dedicavam uma especial atenção ao funcionamento desses dois Campos. Diante de um menor número de flagelados (em comparação com outros Campos), os administradores das Concentrações de Fortaleza procuravam desenvolver um trabalho exemplar. Com efeito, esses dois cativeiros, assumiam, por vezes, a condição de duas vitrines diante das quais o visitante poderia ver a concretização de um projeto humanitário e moderno. Esses Campos chegaram a fazer parte do roteiro turístico da “Noiva do Sol”, conquistando elogios e doações de visitantes que viajavam no luxuoso navio “Touring Club”.

É fundamental ressaltar que o estabelecimento desse isolamento fazia parte dos projetos de modernização para a cidade de Fortaleza em 1932. Nesse ano, a cidade se desenvolvia, em certa medida, de maneira acelerada. No entanto, esse desenvolvimento rápido dependia fundamentalmente da mão-de-obra flagelada pois, com a seca, milhares de braços sertanejos trabalhavam nas obras de melhoramento urbano em troca de comida.

Esta seca foi largamente utilizada pelos poderes na construção de obras urbanas: calçamentos, prédios, casas particulares, reforma nas fachadas das casas. No entanto, essa prática de exploração da mão-de-obra do flagelado já se verificava em secas anteriores. No livro Fortaleza Velha, do cronista João Nogueira, um capítulo é dedicado às ruas e praças da cidade entre 1856 e 1936. Nogueira elenca 163 ruas principais. Pelo seu registro, constata-se que, durante as secas de 1879, 1888 e 1932 foram construídas 98 ruas sendo 46 no ano de 1932/33. Ou seja: a maioria das ruas apreciáveis na cidade de Fortaleza até o ano de 1936 foram construídas em anos de seca. Em 1932 essa utilização dá um salto significativo ao mesmo tempo que o controle dos retirantes fora da Capital também se aperfeiçoa. Constrói-se, assim, um aparente paradoxo: as obras na cidade necessitavam de uma abundante mão-de-obra flagelada, não obstante, o descontrole na presença desses flagelados trazia problemas para os planos de desenvolvimento da Capital. O projeto dos Campos surge como uma tentativa de resolução desse problema.

Vale a pena salientar, que os Campos de Concentração não despontam como recurso extremo em face da seca. Ao contrário, essas Concentrações fazem parte de uma tradição no controle de mendigos e doentes pelas ruas da Capital. Ou melhor: em diversos momentos, as elites de Fortaleza declararam guerra aos mendigos na tentativa de isolar de suas praças e alamedas a incômoda miséria. Por exemplo, em 1923 (ano de chuva) a sociedade elegante de Fortaleza resolveu decretar o “Dia de Extinção da Mendicância”. A partir do dia 17 de fevereiro desse ano todos àqueles que fossem encontrados a esmolar pelas ruas seriam detidos na delegacia de polícia municipal. O discurso de cidade moderna reforçava ainda mais a necessidade em manter afastados ricos e pobres. Afinal, tanto mais moderna é a cidade quanto menos aparecem as suas anomalias: os seus velhos, os seus loucos, os seus doentes.

Com a seca, os incomodados com a miséria tinham a argumentação necessária para o isolamento e o controle dos flagelados de uma forma mais sistematizada. Esses Campos de Concentração eram cidades sob o olhar atento dos poderes urbanos.

Entre o Curral e a Cidade

No final de junho, o grande número de concentrados nos Campos começava a preocupar as autoridades. Com pouco mais de um mês de funcionamento, os Campos de Concentração apresentavam uma inesperada quantidade de sertanejos. Conforme as estatísticas oficiais, os dados eram os seguintes: 6.507 em Ipú, 1.800 em Fortaleza, 4.542 em Quixeramobim, 16.221 em Senador Pompeu, 28.648 em Cariús e 16.200 em Burití, perfazendo um total de 73.918 flagelados. (Cf. O Povo, 30/06/1932).

Sobretudo, depois de junho de 1932, a multidão de concentrados se multiplicava dia após dia. Os grandes terrenos, cercados ou murados, geralmente planejados para alojar de dois a cinco mil flagelados, chegaram a comportar mais de 50 mil retirantes, como é o caso do Campo de Concentração do Buriti, no Município do Crato. O pavor diante da multidão crescia na proporção de sua extensão. O desejo de controlar os miseráveis também trilhava o caminho dessa proporcionalidade: quanto maior o número de flagelados mais rigorosa era a vigilância.

Muitos sertanejos que partiram para uma determinada cidade não chegaram ao destino previsto. Antes de alcançarem o território urbano, foram detidos nesses lugares cercados e vigiados. Os Campos de Concentração funcionavam como uma prisão. Os que lá chegavam não podiam mais sair, ou melhor, só tinham permissão para se deslocar quando eram convocados para o trabalho, como a construção de estradas e açudes ou obras de “melhoramento urbano” de Fortaleza, ou quando eram transferidos para outro Campo. Durante esses deslocamentos, sempre havia uma atenta vigilância para evitar as fugas ou rebeliões. Os flagelados só se deslocavam dentro de caminhões e, a todo momento, ficavam sob o atento olhar de vigilantes.

Todos os Campos eram vigiados durante o dia e a noite. Na Concentração do Patú, por exemplo, “o serviço de polícia era feito por duas turmas com 36 homens, divididos em cinco postos durante o dia e seis no correr da noite”.(Cf. O Povo, 25/05/1932).

Nos dois Campos de Fortaleza, a vigilância era efetivada por soldados do 23ºBC. Mas, nos Campos espalhados pelos Sertão, alguns guardas eram os próprios flagelados. Aqueles que aderiam mais rapidamente ao projeto de controle dos Campos eram colocados em postos de vigilância. Desse modo, os escolhidos eram expostos como homens premiados por suas condutas.

Por outro lado, vale salientar que, em muitos casos, os escolhidos superavam as expectativas previstas nos postulados do disciplinamento e acabavam se transformando em problemas para os administradores. Empolgados com o poder que passavam a exercer - ou seja, o poder de vigiar- muitos desses guardas começavam a causar “desordens”, pois tornavam-se demasiadamente agressivos e arbitrários no trato com os concentrados. Nessas circunstâncias, esses vigilantes entravam em dissonância com o projeto idealizado para o funcionamento dos Campos, que pretendia controlar o flagelado com base em um discurso civilizado e civilizador, no qual o humanitarismo era um valor aparentemente inegociável. Quando alguns casos de violência e desmando eram denunciados por jornalistas, os vigilantes envolvidos perdiam o cargo e voltavam à condição de concentrados.

Ao que tudo indica, em algumas Concentrações existia um lugar específico para o castigo e a punição exemplar. Nos relatos jornalísticos que descreviam detalhadamente a estrutura dos Campos de Concentração, jamais se falou nessa prisão punitiva. Entretanto, nas memórias dos sertanejos que passaram por estes lugares, a lembrança do “sebo” tornou-se marcante. Conforme o depoimento oral do Sr. José Camurça, dentro do próprio Campo do Buriti (no Crato) havia “uma espécie de cadeia para os desordeiros” e “era um cercado de madeira bem alto e seguro”.

D. Maria de Jesus, que esteve por cinco meses na Concentração de Senador Pompeu, comenta que os rapazes deixavam que seus cabelos fossem raspados temendo o confinamento no “sebo”.

A punição era, portanto, realizada de maneira exemplar. A existência de um lugar para o castigo era mais uma estratégia no disciplinamento dos flagelados dentro das Concentrações.

Mesmo que não fossem utilizados com freqüência, somente pelo fato de existirem, esses lugares conseguiam fortalecer o controle dos flagelados através de uma intensificação da “pedagogia do medo”. Constituía-se como uma espécie de autoridade inanimada.

Tudo indica que, nos Campos de Fortaleza, esse tipo de punição era realizada de forma diferente. Nos casos de desordens, os flagelados eram encaminhados à delegacia, onde eram detidos. Em Fortaleza, esse tipo de comportamento era julgado como “caso de polícia”.

No registro do “Rol dos Culpados” da cidade de Fortaleza, encontram-se alguns casos, como o de Francisco Alves de Freitas, 20 anos, acusado por revoltar-se com o destacamento do Campo de Concentração do Urubu; ou José Serafim de França, 34 anos, acusado por tentar revoltar os vigias do Campo de Concentração e, desse modo, perdeu seu posto de chefe dos referidos vigias. Como essas, outras prisões de Concentrados foram efetivadas na Delegacia

Municipal de Fortaleza no ano de 1932. Essas prisões são alguns indícios sobre as formas pelas quais os sertanejos colocavam-se como sujeitos ativos em face das práticas repressoras. O projeto disciplinador dos Campos era efetivado de modo bastante conflitivo.

Em geral, os concentrados eram presos por roubo de comida ou algum tipo de afronta às normas morais. No “rol dos culpados” referente aos meses de julho e agosto de 1932, muitos concentrados foram detidos na polícia. A maioria dos casos é referente a embriaguez e posterior revolta contra os administradores e vigilantes do Campo. Os Campos de Concentração eram lugares onde os confrontos entre os flagelados e o poder público colocavam-se das mais diferentes maneiras.

A preocupação dos vigias era acima de tudo com a moral e a decência. Para a realização de um projeto assistencial, disciplinador e civilizador era necessário uma vigilância redobrada sobre o comportamento sexual dos flagelados. Afinal, a imagem desse tipo de projeto ficaria bastante comprometida se os considerados “atos indecorosos” chegassem a se impor entre os retirantes. Nesse sentido, “os casebres eram divididos em um pavilhão para os homens solteiros e outro para os viúvas e as famílias”.

Conforme a imprensa de Fortaleza, no Campo de Concentração do Matadouro, “vinte homens com relativa instrução militar cuidavam de manter a ordem e o respeito entre os flagelados”. Alguns jornalistas chegavam a admitir que a alimentação tornava-se, em alguns momentos, bastante precária, no entanto, asseguram que “... no tocante à ordem e moralidade o serviço, nada deixa a desejar”. Com isso, essas matérias reforçam a idéia de uma dedicação irretocável no controle dos flagelados. A comida e o remédio deveriam ser enviados pelo governo federal, mas, aquilo que cabia ao poder interno, vinha sendo admiravelmente implementado.

Em todos os Campos de Concentração, foram erguidas capelas, que, além de abrigar as orações e alimentar a fé dos flagelados, eram utilizadas para reforçar a vigilância sobre os corpos. No Campo de Concentração do Ipu, o vigário Gonçalo Lima, celebrava missas, casamentos e batizados semanalmente. Ao falar sobre o assunto, o jornal Correio da Semana (05/11/1932) fez um comentário que pode ser visto como um significativo indício do imaginário das classes dominantes em torno da vida moral dos retirantes: “Em um meio tão propício à corrupção dos costumes somente a ação constante do vigário e dos catequistas poderia manter a moralidade.”

O vigário Gonçalo Lima conta com orgulho que até o dia 24 de dezembro de 1932 já havia realizado 250 batizados, 35 casamentos e 1.600 comunhões no Campo de Concentração do Ipu. O dedicado padre constatou que poucos sertanejos se orientavam segundo os ensinamentos da “Santa Madre Igreja”, pois muitos casais viviam maritalmente sem o sacramento matrimonial e tinham seus filhos pagãos. Nesse sentido, o Campo era visto, também, como uma significativa oportunidade de introjetar nos flagelados a noção de pecado presente na união sem casamento oficializado pela Igreja.

Para a religiosidade dos sertanejos pobres, os sacramentos, como o batismo e o matrimônio, não tinham a importância prevista pela hierarquia clerical. Acostumados a viver em lugares onde a ausência de padre é freqüente, muitos sertanejos desenvolveram suas experiências religiosas sem atribuir uma importância fundamental aos sacramentos. Suas vivências religiosas eram constituídas sobretudo por um relacionamento com o sagrado sem a mediação dos sacerdotes, ou seja, eram compostas por uma tessitura de ligações com o santo protetor, diante do qual eram realizados os pedidos, os agradecimentos e as orações. Para as mais remotas paragens da caatinga, o sagrado se constituía muito mais mediante o oratório doméstico que através de rituais comandados por um sacerdote. Desenvolvia-se, então, um catolicismo pouco ortodoxo para os olhos da Igreja.

Certamente, os números citados pelo Pe. Gonçalo Lima não representam ainda a evangelização desejada pela Igreja. Ao que parece, a importância dada aos sacramentos era bem maior para o Pe. Gonçalo que para os sertanejos. Ou melhor: é plausível imaginar que, para muitos concentrados, os batizados e casamentos não possuíam um significado primordial. É possível supor que, se não estivessem encarcerados nos Campos, continuariam a viver sem esses sacramentos. Com efeito, é preciso salientar que, no imaginário desses sertanejos, viver sem esses sacramentos não significa ter uma menor dignidade ou ser um católico pouco dedicado.

Com a presença quase diária dos padres nas Concentrações, alguns flagelados se empolgavam e casavam mais de uma vez. No registro dos concentrados que foram presos na delegacia de polícia da cidade, alguns casos referem-se à prática da bigamia. O Sr. José Pedro de Lima, por exemplo, foi acusado de ter casado duas vezes no Campo de Concentração do Urubu.

Depois de causar desordem e briga entre as duas esposas que moravam na Concentração, o Sr. José foi denunciado e preso. Ao que parece, um dos fatores que estimulava a prática do casamento era a distribuição de “enxovais”. Sabe-se que alguns dos casais que recebiam o sacramento do matrimônio ganhavam um “enxoval” das “senhoras católicas” e de outras autoridades.

Com a alimentação em estado insatisfatório, o padre colocava-se como uma figura ainda mais importante, na medida em que tentava doutrinar os flagelados para a importância do alimento espiritual. Nos discursos proferidos pelos sacerdotes nos Campos de Concentração a frase fundante dos sermões com freqüência se repetia: “nem só de pão vive o homem, ele precisa também de conforto moral.” (O Nordeste, 19/05/32). Com a falta de comida e o perigo iminente de revoltas, era fundamental ressaltar a importância do alimento espiritual.

Na seca de 1932, o obituário oficial registrou o número de 23.000 mortos. Pelo registro de óbitos da Igreja Matriz do Município do Ipu, somente no Campo dessa cidade, havia diariamente uma média de seis a sete mortos. Diante desse quadro, a Igreja também se apresentava para consolar as famílias e assegurar às almas o encontro com o pai celestial. A inatividade era considerada a grande inimiga da ordem e da disciplina. Com isso, os administradores dos Campos legitimavam a exploração abusiva dos flagelados nas mais diferentes atividades. A justificativa apresentada pelo administrador do Campo de Concentração do Ipú em relação ao emprego dos flagelados nestes serviços é um significativo indício para o entendimento desses trabalhos como parte das estratégias de disciplinamento: “Os flagelados não podem ficar inativos um só momento. Todos eles têm que trabalhar seja em que serviço for.”

Conforme suas declarações, havia várias oficinas de trabalhos internos para os flagelados. Estes serviços eram diversos e ocupavam homens, mulheres e crianças:

“... cerca de 500 homens trabalham no serviço de olaria, mas a oficina de carpintaria tem sido a mais importante pois todo o serviço de madeira de que precisa o Campo, é feito ali com uma habilidade dígna de nota. Cama, cadeiras, confissionários, cacetetes para os guardas, tudo, enfim, é feito na carpintaria do Campo. Na alfaiataria são aproveitados os sacos de gêneros e tranformados em roupas para os concentrados. A barbearia também ocupa alguns profissionais e há ainda uma secção de funilaria, onde se fabricam lamparinas, canecas e outros utensílios usados nos campos”.

Observa-se que, além dos trabalhos externos e de maior extensão, como estradas de rodagem, calçamento, calçadas, existiam vários trabalhos internos. Nota-se que o controle do cotidiano dos flagelados era implementado de diferentes formas, tentando atingir suas vidas em várias dimensões.

Para os que se destacavam nesses serviços diversos, era dada a recompensa de uma melhor “ração” ou ainda uma “diária mínima”. Mas os concentrados nem sempre concordavam com essa remuneração. Muitos flagelados se recusavam a receber esmolas pelo seu trabalho e se rebelavam contra a administração dos Campos de Concentração. Alguns eram presos na delegacia da cidade e outros conseguiam fugir das Concentrações.

Os jornais publicavam crônicas denunciando a postura desses “rebeldes” como malandragem. Em geral, esses textos tinham sempre o mesmo título: “A diferença entre o flagelado e o Malandro”. Com isso, tentavam apresentar determinada postura como definidora do flagelado. Aquele que rompesse com esse “modelo” seria definido a partir de outros adjetivos.

O Povo de 28 de abril de 1932, reforça esse modelo de flagelado nos seguintes termos: “Vem se verificando, nos Campos de Concentração, conforme nos declarou o próprio Sr. Interventor Federal – que alguns flagelados robustos, escolhidos para diversos serviços, recebendo a diária mínima de três mil réis, se recusam a trabalhar(...)Esse fato exige repressão. Se o retirante está em bôas condições orgânicas e gosa saúde deve corresponder aos bons propósitos oficiais, desde que lhe ofereçam trabalhos de acordo com suas aptidões(...) mas nos Campos sempre que houver trabalho remunerativo, não haverá lugar para a malandragem.”

Outro aspecto significativo, é o nome com o qual o flagelado batizou os Campos de Concentração: Curral do Governo. Na sua vivência do mundo rural, o sertanejo sabe que o gado precisa ser encurralado para não fugir. O curral é uma prisão. Mais que isso: é uma prisão de animais. O Campo não era, portanto, um lugar para gente. Era uma prisão que tratava os seres humanos como animais. Na memória de muitos sertanejos, o curral foi mais um caso que explicitava a forma cruel pela qual o Governo costumava, e ainda costuma, assistir os pobres.

Os administradores também ofereciam diversão aos concentrados. No Campo de Concentração do Matadouro formou-se até “uma orquestra e um corpo de bailarinos entre os flagelados”. Os jornais anunciavam com entusiasmo “a disposição dos pobres infelizes para a alegria e o divertimento”. Além disso, muitas apresentações de jograis e corais infantis eram realizadas nos Campos.

Mas o flagelado também se divertia a seu próprio modo. Muitos depoentes contam que, à noite, quando todos os flagelados terminavam seus serviços, eles se reuniam e entoavam cantigas, faziam desafios e repentes. Tocavam instrumentos e dançavam. Como lembra o Sr. Francisco Lima: “agente sempre dava um jeitinho de animar”.

Certamente, a nomenclatura Campos de Concentração traz uma carga histórica que nos remete imediatamente ao holocausto nazista, entretanto, um dos desafios desse estudo foi refletir sobre as questões que compõem a historicidade desses Campos durante a seca de 1932 no Ceará. Nesse sentido, nosso exercício foi tentar perscrutar as relações, tensões, conflitos, acordos e complexidades próprias desse espaço-tempo vivenciado pelos flagelados na sua luta diária pela sobrevivência em confrontos nem sempre explícitos com os poderes instituídos.

A autora é Mestra e Doutoranda em História pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. 

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