Professor
Jorge Carvalho criador do Rapadura Cultural – foto blog do Crato |
O programa cearense não podia ter melhor nome, pois a rapadura, embora difícil de roer, é doce e nutritiva. Feita do caldo da cana, essa comida de pobre aparece, hoje, como suplemento alimentar indispensável nos cardápios regionais da merenda escolar do Nordeste. De baixo custo, é um produto energético com ferro, cálcio, potássio, fósforo, vitaminas, sais minerais e – imaginem só! - até riboflavina que, na minha santa ignorância, não sei bem o que diabo é, mas me asseguram que é a vitamina B2.
Consciente de que coenzimas da riboflavina são essenciais para converter a piridoxina e o ácido fólico (Eraste! Eu, hein, Rosa! Vade retro, Satanás!), uma empresa alemã, em 2006, registrou a rapadura como marca registrada de sua propriedade. Houve protesto em frente ao Consulado da Alemanha, no Rio de Janeiro: “A rapadura é nossa, cabra da peste” – gritavam os manifestantes, sabedores de que a deficiência em riboflavina causa rachadura na boca, língua arroxeada, coceira, pele seca, dor de olhos, inflamação da gengiva e até frieira. Aprenderam isso, visitando o Museu da Rapadura, criado pela Universidade Federal da Paraíba em antigo engenho da cidade de Areia.
Dia do Poeta
Como já deu pra sacar, não é bem sobre o Berinho BB que eu quero falar, nem sobre sua aliança com o BBB, mas sobre esse doce programa cultural que traz a rapadura no nome. Eis o que eu queria dizer: o Rapadura Cultural, criado há quase dez anos por Jorge Carvalho, um professor cabra-da-peste, é o anti-Berinho, porque divulga artistas de verdade que estão fora da grande mídia e dos mega-eventos: seresteiros, brincantes, cordelistas, forrozeiros, cantadores, mamulengueiros, palhaços, poetas marginais, compositores, violeiros - tudo gente humilde, que está longe dos holofotes.
Todo ano, no dia 14 de março – Dia do Poeta - o Programa Rapadura Cultural organiza um evento chamado ‘De Aderaldo a Patativa’, onde celebra as expressões de cultura popular. Ontem, na Praça Siqueira Campos, em Crato, a homenagem foi ao maior poeta do Ceará, Antônio Gonçalves da Silva, mais conhecido como Patativa do Assaré, que se vivo fosse estaria completando 100 anos.
“Para ser poeta, não precisa ser doutor. Basta, no mês de maio, recolher um poema em cada flor, brotada nas árvores do seu sertão” – declamava Patativa do Assaré, que em toda sua vida freqüentou a escola apenas por um semestre, mas que teve sua genialidade reconhecida pela academia. Três universidades diferentes conferiram-lhe o título de Doutor Honoris Causa.
Desde menino, o poeta trabalhou duro na roça, ficando com calos na mão pelo uso da enxada. Aos quatro anos, ficou cego de um olho. Com oito anos, trocou a ovelha do pai por uma viola. Com dezoito, viajou para o Pará, onde enfrentou peleja com outros cantadores e ficou conhecido em toda a região.
“Camões também só tinha um olho” – declarou ele, bem humorado, buscando companhia. Antes de morrer, aos 91 anos, Patativa concedeu uma entrevista, que foi reprisada esses dias pela TV Brasil, mostrando que embora não escolarizado, lia muito, conhecia os clássicos da língua portuguesa, entre os quais Luiz de Camões, Bocage, Castro Alves. Traçou até o ‘Tratado de Versificação’, de autoria de Olavo Bilac e Guimarães Passos.
O sertão é meu
Patativa ficou consagrado mesmo quando Luiz Gonzaga gravou as músicas dele, entre as quais ‘A triste partida’, que canta o drama da seca e da migração nordestina tanto para a Amazônia, na época da borracha – difícil encontrar um amazonense que não tenha sangue nordestino – quanto para São Paulo, em período mais recente. “Distante da terra tão seca, mas boa, exposto à garoa, à lama e ao paú, meu Deus, meu Deus, faz pena o nortista, tão forte, tão bravo, viver como escravo, no Norte e no Sul”.
“Cante a cidade, que é sua, que eu canto o sertão, que é meu” – ele declamava e reclamava da imagem criada pela mídia eletrônica sobre o sertão. O reconhecimento de sua genialidade, além da consagração popular, pode ser avaliado pelos estudos que estão fazendo de sua obra em universidades da França e da Inglaterra e pela representação de seus escritos em várias santuários da chamada cultura erudita, como no teatro de Amir Haddad, que montou o espetáculo ‘Meu querido jumento’.
“Leitor ferrenho de clássicos da literatura portuguesa, não seguiu metodologias acadêmicas para elaborar seus versos, e sim sua sensibilidade. O que talhou uma arte para ter, entre outras funções, a de enfrentar as injustiças sociais, sem que sua riqueza estética ficasse abalada” – escreveu recentemente Eduardo Sales de Lima.
Ele lembra que depois da morte de Patativa, o crítico literário Mário Chamie dizia com propriedade: “Enquanto um Guimarães Rosa, um João Cabral de Melo Neto e outros escritores eruditos convertem a matéria-prima da tradição oral em alta literatura, Patativa faz o inverso, serve-se da literatura erudita para enunciar uma linguagem de comunicação direta”.
Outro poeta popular é Miguezim de Princesa, paraibano radicado em Brasília, que já escreveu até um cordel sobre o fato recente do aborto da menina de nove anos. Em função das várias cartas de leitores sobre a coluna passada, que abordou o tema, reproduzo aqui as duas estrofes finais do citado cordel:
“Milhões morrendo de Aids: /
É grande a devastação, /
Mas a igreja acha bom /
Furunfar sem proteção /
O padre prega na missa /
que camisinha na lingüiça /
É uma coisa do Cão./
E esta quem me contou /
Foi Lima do Camarão/
Dom José excomungou /
A equipe de plantão,/
A família da menina /
E o ministro Temporão, /
Mas para o estuprador, /
Que por certo perdoou, /
O arcebispo reservou /
A vaga de sacristão”.
Poetas como Miguezim da Princesa e Patativa do Assaré merecem a homenagem mais do que justa que lhes foi feita, ontem, no Crato, atendendo plenamente os objetivos do Programa Rapadura Cultural, que é defender a cultura popular regional e estimular os artistas populares a ocupar as praças e as feiras, disseminando a beleza de sua arte e evidenciando sua importância na formação cultural do povo brasileiro. Bem que o Amazonas está precisando comer rapadura.
Por José Ribamar Bessa Freire - Jornalista
Jornal Diario do Amazonas
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